terça-feira, 5 de dezembro de 2017



Um Texto Longo que Vale Ser Lido

Outro Brasil


Cada dia me reconheço menos no país a que pertenço. Sou de um tempo em que a população amava esse chão, se sentia orgulhosa das matas, dos rios, das riquezas do subsolo, ainda que não desfrutasse economicamente delas. Era a promessa de futuro, talvez os filhos ou os netos pudessem fazê-lo. Havia festa de São João, Carnaval e Saci Pererê. Nas praças do interior as pessoas cantavam valsas e nos botecos sempre uma roda de samba ajuntava amigos. Eram expressões de um estado de alma, de um sentimento coletivo de cumplicidade que fazia rolar lágrimas quando o hino era tocado. Vivi a ditadura, e mesmo assim esse espírito persistia.


Todos sabiam que aquilo era temporário, que o verdadeiro país estava ali debaixo dos pés. Hoje, nada mais disso existe. Como sentimento coletivo, digo. As pessoas não se olham nas ruas, não riem, não fazem graça. Não param pra falar mal do guarda, não cabulam aula pra ir ao cinema, não pegam o carro do pai pra ir no baile de sábado. Se você piscar pra alguém, pode ser preso por assédio. Conheci muita gente louca, como Augusto Strazzer, Tio Tó, Ruth Escobar, Agripino, Plínio Marcos, Jura Otero, M. Alice Vergueiro, Samuca, Ricardo Petraglia, Ricardo Almeida, Celso Cury, entre muitos muitos outros, todos capazes de perder o amigo a troco de uma piada, bem como gastarem seus últimos tostões numa garrafa de champanhe, só pra brindar o fundo do poço em grande estilo. Isso não existe mais. As pessoas perderam o senso de prazer, embora cometam mais extravagâncias. Talvez seja essa a diferença entre ser dionisíaco e ser psicótico. O único psicótico que me lembro na política foi Jânio Quadros. Hoje, 16% pretendem votar em Bolsonaro. Maluf, Andreazza, Collor, Eliseu Resende, Ibrahim Abi-Ackel, entre muitos mais, eram de direita, mas não chegavam nem perto dos desmandos do atual candidato do Escola Sem Partido. Mesmo sendo de direita, era necessário certo charme, certa conversa mole, certo ar de doutor. Hoje, a política é feita aos xingamentos, cusparadas, tapas na cara. O princípio elementar de reconhecimento do outro sumiu. O país está sendo vendido a preço de banana e não se vê uma única alma na rua reclamando. Agora, todos usam whatsapp. E Uber. Motorista de taxi não era uma profissão, era um estado de espírito. A gente entrava e, no final da corrida, já saia informado não só das últimas notícias como dos comentários de fulano ou beltrano sobre isso ou aquilo. Os jornais e revistas faziam reportagens sensacionais, que rendiam semanas de discussão. Havia livrarias e, obviamente, livros roubados. Das lojas ou dos amigos, devoluções que nunca se cumpriam.

E havia o vinil, o Kid Vinil, o Arrigo Barnabé, Os Mamonas Assassinas e a Blitz, Fausto Fawcett e as loiras belzebu, uma orgia musical que via de regra terminava com uma calcinha sendo sugada. E o Radar Tantã, o Papagaio, o Banana Power, onde se podia dançar a noite toda tomando apenas coca-cola. Mas a vibe porreta corria solta no Madame Satã, no Café Piu-Piu, no Carbono 14. Esse Brasil acabou. Me sinto nostálgico e saudoso, de um país que se foi. De um povo brasileiro que já foi melhor, que amava o imponderável e não pagava dízimo.

Edelcio Mostaço
Ator e Professor na empresa Udesc - Universidade do Estado de Santa Catarina

Visualizado por José Antonio de Lima às 17 de novembro de 2017 15:55
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