Fragmento do Homem
Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta
amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi
degradado, convertido em mercadoria.
A obsessão do lucro foi transformando o homem num objeto com
preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a
alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável
dos simulacros.
Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro
do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em
não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.
E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento
dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por
alheias à “sabedoria” do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado
implacavelmente para transformar o indivíduo em “cadáver adiado que procria”,
como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada
ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados
no próprio cerne da vida?
Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua
contradição, morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste,
mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica que
preocupada com uma problemática moral, que não sabe como fundar e instituir,
pois nenhuma fará autoridade se não tiver em conta a totalidade do ser;
nenhuma, em que espírito e vida sejam concebidos como irreconciliáveis;
nenhuma, enquanto reduzir o homem a um fragmento do homem. Nós aprendemos com
Pascal que o erro vem da exclusão.
Eugénio de Andrade,
Poeta português,
nascido em 19 de janeiro de 1923.
Faleeceu em 2005
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Apoio
Cultural
Casa
Sete
Lingüiça
de carne de porco
Qualidade
e sabor diferenciado
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