Nota para não escrever
Se o conhecimento é
uma forma de escrita, mesmo sem palavras, uma respiração calada, a narrativa
que o silêncio faz de si mesmo, então não se deve escrever, nem mesmo admitindo
que fazê-lo seria o reconhecimento do conhecimento.
Pode escrever-se
acerca do silêncio, porque é um modo de alcançá-lo, embora impertinente. Pode
também escrever-se por asfixia, porque essa não é maneira de morrer.
Pode escrever-se ainda por ilusão criminal: às vezes imagina-se que uma
palavra conseguirá atingir mortalmente o mundo. A alegria de um assassinato
enorme é legítima, se embebeda o espírito, libertando-o da melancolia da
fraternidade universal. Mas se apesar de tudo se escrever, escreva-se sempre
para estar só.
A escrita afasta
concretamente o mundo.
Não é o melhor método, mas é um. Os outros
requerem uma energia espiritual que suspeita do próprio uso da escrita, como a
religiosidade suspeita da religião e o demonismo da demonologia.
A escrita -
inferior na ordem dos atos simbólicos - concilia-se mal com a metamorfose
interior - finalidade e símbolo, ela mesma, da energia espiritual. O espírito
tende a transformar o espírito, e transforma-o. O resultado é misterioso. O
resultado da escrita, não.
Herberto Helder,
1930/2015
Poeta nascido em Portugal
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