quinta-feira, 30 de março de 2017


Uma Crônica
Conversa de Feriado
Num destes muitos feriados do Brasil me convidei  para almoçar  na casa de um amigo na cidade vizinha. Acordei cedo, como de costume, tomei banho, café e sai em direção ao ponto de ônibus. Para um feriado em meio de semana até que havia um número razoável de pessoas por ali.
Sento-me no banco entre dois senhores e por alguma razão brinquei com um deles, no que o outro, talvez pensando que eu quisesse conversar, comentou alguma coisa sobre os antigos motociclistas e suas máquinas que, segundo ele, eram maiores, tanto os homens quantos as motos. Para ele, hoje qualquer menino pode dirigir a máquina que também diminuiu.­
Respondi monossilabicamente, pois se moto não é um assunto que domine, muito menos que me interesse, mas como ele queria conversar emendou dizendo que sofria de um mal respiratório que o fazia freguês do pronto socorro da cidade, brinquei dizendo que poderia então alugar um quarto na Santa Casa, pois tornaria mais fácil, parece que era o que  esperava para continuar a  me manter no posto de interlocutor.
Falou então que se mudara de um bairro, pois sua casa tinha sido arrombada e alguns objetos foram furtados. Não detalhou quais, mas falou que todos os bandidos eram canalhas, dizendo que se pegasse um deles arrancaria todas as suas unhas. Também não me disse se com alicate ou com os dentes.
Como não fiz nenhum comentário, até porque imaginei se o fizesse poderia ouvir um arrazoado sobre a necessidade da pena de morte, mas insistente, arrematou que também fora roubado numa data, que lembrava de cor  assim como a hora exata de tal infortúnio. O roubo, sob ameaça de armas, fora efetuado por três homens sarados. Uma observação interessante, homens sarados, que já se referira aos antigos usuários das grandes motos.
Mais uma vez, com receio de ouvir a defesa da pena capital, me calei, foi quando resolveu fazer um discurso sobre o ser humano. Insensível, ingrato, intolerante, canalha, um pouco do que ele pensa de nós, inclusive pede para Deus  que aproveite a onda de terrorismo e solte uma bomba neste vale de infelicidade. Inclusive - uma raridade -, se incluiu no meio dos sacrificados. Eu solicitei a minha não inclusão. Se fosse possível, claro.
Mas parece que, como os islâmicos, estaria no Céu, pois já tinha visitado três vezes Jerusalém – foi marinheiro – e com isso diminuído substancialmente seus pecados.
 este momento chega o circular e pensei que tinha me livrado do posto de interlocutor. Ledo engano, pois na parte da frente, lugar de idosos, so sobrara um espaço, ao lado dele. Sentei-me, resignado, mas confortado com seu pedido de desculpa caso cochilasse, conseqüência do medicamento ingerido no pronto socorro.
 Não cochilou, mas se calou, até que numa parada adentrou uma senhora e ele, ao meu ouvido, disse que a mulher costumava se vestir de mendiga para pedir esmola e que já possuía três casas. Algo que eu não via problema algum, pois pedir não é crime e só dá esmola quem quer, portanto as tais casas foram adquiridas com renda comprovada. Não sei se  a Receita sabe disso.
Como não fui solidário com sua maledicência, se revoltou dizendo que parte do dinheiro arrecadado pela senhora era para sustentar o vício do filho que é dependente químico. Não comentei nada, mas pensei na possibilidade de indicá-la para chefiar um departamento de finanças da cidade ou, quem sabe, do estado, afinal pedindo esmola, ela conseguiu comprar três casas e ainda sustentar um vício caro. Um gênio das finanças.
Bem, antes de chegar ao meu destino, ainda ouvi algumas outras coisas que não prestei muita atenção, a não ser que não bebe, não fuma e   um outro vício que não entendi, mas terminou gloriosamente seu discurso falando em apocalipse, já que no cemitério alguém está retirando as dentaduras dos mortos e distribuindo para os pobres. Se, para ele, era o final dos tempos, para mim natural, já que morto não come.
 Finalmente  cheguei, me despedi  e ele me desejou um bom feriado, pedindo que Deus me acompanhasse.Não sei se Deus iria perder seu precioso tempo para me acompanhar, mas caminhei em direção à casa de meu amigo pensando na cor que se pode pintar a sua vida. *
*com licença do Pe. Mário Bonatti                                                              
Jorge Nicoli
Que, como Drummond, jamais  será agraciado com o Nobel               
Do Blog
 sta crônica chegou à final estadual do Mapa Cultural, 2013     

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