Mesmo que Venha o Tem pó do Sal
Mas só muito mais tarde, como um estranho flash-back
premonitório, no meio duma noite de possessões incompreensíveis, procurando sem
achar uma peça de Charlie Parker pela casa repleta de feitiços ineficientes,
recomporia passo a passo aquela véspera de São João em que tinha sido permitido
tê-lo inteiramente entre um blues amargo e um poema de vanguarda.
Ou um doce blues iluminado e um soneto antigo. De qualquer
forma, poderia tê-lo amado muito. E amar muito, quando é permitido, deveria
modificar uma vida – reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma
geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e
no território conquistado hastear uma bandeira.
Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e
verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças. Mesmo que
depois venha o tempo do sal, não do mel.
Caio Fernando Abreu
Nascido
em Santiago, RS, em 1948
jornalista, dramaturgo e escritor.
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