O cortejo ingênuo
dos nossos sonhos
Não desenhamos uma imagem ilusória de
nós próprios, mas inúmeras imagens, das quais muitas são apenas esboços, e que
o espírito repele com embaraço, mesmo quando porventura haja colaborado, ele
próprio, na sua formação.
Qualquer livro, qualquer conversa
podem fazê-las surgir; renovadas por cada paixão nova, mudam com os nossos mais
recentes prazeres e os nossos últimos desgostos.
São, contudo, bastante fortes para
deixarem, em nós, lembranças secretas que crescem até formarem um dos elementos
mais importantes da nossa vida: a consciência que temos de nós mesmos tão
velada, tão oposta a toda a razão, que o próprio esforço do espírito para a
captar a faz anular-se.
Nada de definido, nem que nos
permita definir-nos; uma espécie de potência latente... como se houvesse apenas
faltado a ocasião para cumprirmos no mundo real os gestos dos nossos sonhos,
conservamos a impressão confusa, não de os ter realizado, mas de termos sido
capazes de os realizar. Sentimos esta potência em nós como o atleta conhece a
sua força sem pensar nela.
Atores miseráveis que já não querem
deixar os seus papéis gloriosos, somos, para nós mesmos, seres nos quais dorme,
amalgamado, o cortejo ingênuo das possibilidades das nossas acções e dos nossos
sonhos.
André Malraux,
1901/1976
Escritor e político francês
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