A ordem das coisas
A natureza trai-nos, a sorte muda, um deus vê do alto todas estas
coisas.
Apertava ao dedo a mesa de um anel onde, num dia de amargura, mandava
gravar estas palavras tristes; ia mais longe no desengano, talvez na blasfêmia;
acabava por achar natural, senão justo, que devíamos perecer.
As nossas letras esgotam-se; as nossas artes adormecem; Pâncrates não é
Homero; Arriano não é Xenofonte; quando tentei imortalizar na pedra a forma de
Antínoo não encontrei Praxíteles.
Depois de Aristóteles e de
Arquimedes, as nossas ciências não progridem; os nossos progressos técnicos não
resistiriam ao desgaste de uma longa guerra; mesmo os nossos voluptuosos
desgostam-se da felicidade.
O abrandamento dos costumes, o avanço das idéias no decorrer do último
século é obra de uma ínfima minoria de bons espíritos; a massa continua ignara,
feroz, quando pode, de qualquer forma egoísta e limitada, e há razões para
apostar que ficará sempre assim.
Procuradores a mais, publicanos ávidos, demasiados senadores
desconfiados, demasiados centuriões brutais comprometeram adiantadamente a
nossa obra; e os impérios, como os homens, já não têm tempo para se instruírem
à custa das suas faltas.
Onde quer que um tecelão remendar o seu pano, onde um calculador hábil
corrigir os seus erros, onde o artista retocar a sua obra-prima ainda
imperfeita ou apenas danificada, a natureza prefere repartir sem intermediário
a argila e o caos, e esse esbanjamento é o que se chama a ordem das coisas.
Marguerite Yourcenar,
1903/1987
Escritora nascida na França
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GRUPO DE TEATRO
“SÁBIA INDECISÃO”
O Teatro como Arte
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