segunda-feira, 28 de dezembro de 2015



A ordem das coisas

A natureza trai-nos, a sorte muda, um deus vê do alto todas estas coisas.

Apertava ao dedo a mesa de um anel onde, num dia de amargura, mandava gravar estas palavras tristes; ia mais longe no desengano, talvez na blasfêmia; acabava por achar natural, senão justo, que devíamos perecer.

As nossas letras esgotam-se; as nossas artes adormecem; Pâncrates não é Homero; Arriano não é Xenofonte; quando tentei imortalizar na pedra a forma de Antínoo não encontrei Praxíteles.

 Depois de Aristóteles e de Arquimedes, as nossas ciências não progridem; os nossos progressos técnicos não resistiriam ao desgaste de uma longa guerra; mesmo os nossos voluptuosos desgostam-se da felicidade.

O abrandamento dos costumes, o avanço das idéias no decorrer do último século é obra de uma ínfima minoria de bons espíritos; a massa continua ignara, feroz, quando pode, de qualquer forma egoísta e limitada, e há razões para apostar que ficará sempre assim.

Procuradores a mais, publicanos ávidos, demasiados senadores desconfiados, demasiados centuriões brutais comprometeram adiantadamente a nossa obra; e os impérios, como os homens, já não têm tempo para se instruírem à custa das suas faltas.

Onde quer que um tecelão remendar o seu pano, onde um calculador hábil corrigir os seus erros, onde o artista retocar a sua obra-prima ainda imperfeita ou apenas danificada, a natureza prefere repartir sem intermediário a argila e o caos, e esse esbanjamento é o que se chama a ordem das coisas.


Marguerite Yourcenar,
1903/1987
Escritora nascida na França

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GRUPO  DE  TEATRO
“SÁBIA INDECISÃO”


O  Teatro  como  Arte


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